Uma reflexão sobre o legado da região montanhosa onde nasce o rio Ganges

A Cultura da Índia é algo maior do que apenas uma curiosidade regional e folclórica que podemos admirar por suas qualidades estéticas. Na verdade podemos dizer que os mitos, artes e ofícios preservados por aquela cultura constituem uma admirável herança para toda a Humanidade.

O Norte da Índia, em especial na região dos Himalaias, é considerado uma das regiões mais místicas de todo o mundo. Grandes mestres da antiguidade foram buscar ali a inspiração para seus ensinamentos, e grandes heróis tiraram de lá a motivação para realizar feitos extraordinários.

Filóstrato, que escreveu a “Vida de Apolônio”, descreve a viagem do sábio e taumaturgo de Tiana à Índia, e num diálogo com um brâmane chamado “Iarchas”, Apolônio pergunta [III, 19] “Qual é a sua crença a respeito do espírito?”, ao que o indiano responde: “é aquilo que Pitágoras ensinou aos gregos, e que nós ensinamos aos egípcios”. Hoje há acadêmicos que acreditam que as escolas de Orfeu e Pitágoras difundiram na Grécia ensinamentos originários da Índia.

Se não bastasse o testemunho de Apolônio, Estrabão, em sua obra “Geografia” [X, 3, 17] afirma que toda música grega é originária da Trácia e da Ásia Menor. A Trácia tem uma ligação com o Oriente que vai até a Índia, considerada essa região, ainda segundo Estrabão, a área de domínio de Dionisos (o equivalente grego do deus indiano Shiva). Ainda na mesma obra [X, 3, 19], Estrabão atribui à Bactriana (colônia Macedônia do noroeste da Índia) a origem dos Coribantes – que participavam com cantos e danças nos Mistérios da Grécia.

O Historiador Heródoto não tem dúvidas ao atribuir uma localização geográfica precisa, nos Himalaias, aos Uttarakurus – um povo mítico indiano dotado de poderes quase divinos. Esse povo estaria vivendo entre os elevados picos de Uttarakhand. Esse mesmo território é o cenário de grande parte das narrativas épicas do Mahabharata e do Ramayana. Os mitos dessa parte da Índia são considerados narrativas históricas, pelos indianos.

A mitóloga russa H.P.Blavatsky acreditava estar estabelecida ali a base de uma escola iniciática de alcance mundial, que ela identificou, em algumas de suas referências, como “Cis-Himalaica” (termo que compreende a região do Shivalik, em Haridwar, até aproximadamente a cidade de Rudraprayag). Da mesma maneira, o Russo Nicholas Roerich entendia que desde o Uttarakhand até os Montes Altai se estendia uma nação mística que ele identificou à Shambhala do Kalachakra Tantra tibetano. Nessa região, o próprio solo e as rochas estariam dotados de um magnetismo especial, decorrentes de sua relação com forças que estariam além do alcance da percepção humana.

O aspecto mais importante de todas essas referências e de muitas outras que poderíamos acrescentar aqui é a constatação, por parte daqueles que passaram pela região do Uttarakhand, de que se percebe uma transformação íntima pelo simples fato de andar por ali. Da grandiosidade dos acidentes geográficos à simplicidade de sua população, em tudo está presente uma magia de descoberta que é impossível deixar de perceber.

Esse é talvez o grande legado do Uttarakhand para nós – o dom de aprender a sentir a grandiosidade do divino nos pequenos atos da vida cotidiana.